20 de março de 2021

Aqueles que abandonam Omelas

Simplesmente declarar Ursula Kroeber Le Guin (1929-2018) como uma das maiores escritoras de ficção científica de todos os tempos não contempla a principal característica de sua obra: o fato de ela ser revolucionária. Quando Le Guin começou a publicar ficção científica na década de 1960, o campo era dominado pelo “hard sci-fi”, sub-gênero marcado pelo cientificismo e pela crença inquestionável no progresso tecnológico.

Nas palavras da autora, ao seguir esse caminho, a ficção científica assume um caráter de extrapolação, a partir do qual o escritor analisa o próprio presente para, então, construir um determinado futuro, quase sempre, deprimente. Uma outra possibilidade seria, então, utilizar a ficção científica como um exercício de imaginação: a partir da experimentação de diferentes possibilidades e realidades seria possível criar novos horizontes a serem alcançados.

Seja em “A mão esquerda da escuridão”, em que Le Guin cria um planeta onde os seres humanos não têm gênero fixo, ou em “Os despossuídos”, em que a escritora constrói uma sociedade anárquica, tal imaginação é colocada em prática para se experimentar sobre possíveis rumos da humanidade.

No conto “Aqueles que abandonam Omelas”, pertencente ao mesmo universo dos dois livros citados anteriormente, Le Guin convida o leitor a imaginar uma sociedade praticamente ideal, em que todas as coisas e pessoas estão em perfeita harmonia celebrando a vida. Nada de conflitos, nada de líderes, nada com o que se preocupar a não ser como aproveitar ao máximo a vida em Omelas.

Depois de nos familiarizarmos com o ambiente de Omelas, a autora traz uma reviravolta no clima do conto, revelando que a vida leve, radiante, feliz e harmoniosa no interior de Omelas só existe graças a um acordo cruel e, para que uma sociedade vivesse em tal plenitude, o acordo precisava ser ocultado. Esta contradição a toda perfeição dessa sociedade era justamente o que a sustentava com tanto esplendor e inteireza.

Mesmo escondida, essa questão não era segredo para os habitantes de Omelas. Todos sabiam, mas a maioria via como uma espécie de lenda do lugar, que mesmo existindo, era um preço justo pra se ter uma sociedade como aquela. Poucos eram os que conhecem esse segredo mais de perto e se sensibilizaram. Estes, nada fazem para mudar  as coisas, mas uma vez tocados pelo segredo, já não podiam ver Omelas como os mesmos olhos. Decidiu então abandonar aquele paraíso. Para onde iam? Nem mesmo eles sabiam ao certo. Esse conto não se preocupa com o destino dos que abandonam Omelas. Essa pergunta é respondida em outro conto da autora “O dia antes da revolução”.

Em Aqueles que abandonam Omelas, são abordados temas como egoísmo e empatia, assuntos que refletem na nossa sociedade. Quando as pessoas são apresentadas à situação, os adolescentes agem com fúria, tristeza e inconformidade, mesmo diante de todas as explicações dadas para justificar tal procedimento. Ao voltarem para casa, esses adolescentes, no entanto, passam a refletir sobre como poderiam mudar a situação desse pacto maldoso para manter a felicidade. Com o tempo, alguns se alienam em relação ao dilema e entendem que, se tal pacto for desfeito, toda a felicidade e prosperidade de Omelas também acabará. No entanto, aqueles que não admitem a situação e são capazes de imaginar um outro mundo são aqueles que abandonam Omelas. Afinal, Quantos acreditam que devem desprezar uma minoria, para, supostamente, satisfazer a maioria? Até que ponto mudamos nossa forma de consumir produtos de uma determinada marca depois que descobrimos as condições precárias oferecidas aos seus trabalhadores?  Quantas pessoas prejudicam outras para alcançar o sucesso profissional? Quantos indivíduos fazem questão de levar vantagem em tudo? Até que ponto deixamos de comer carne ao assistirmos a um documentário sobre os maus tratos animais e a maneira como eles são abatidos? Quantos apresentam um ar de bondade e felicidade, mas guardam segredos sombrios por dentro?