Se Africanfuturism é uma palavra desconhecida no seu vocabulário, então é hora de tornar o termo relevante em suas leituras: criado e definido por Nnedi Okorafor, a escritora oferece diversas obras aclamadas que nos introduz às produções culturais que estão mais enraizadas nas histórias africanas. Aranha, a Artista é um excelente exemplo de como o Africanfuturism nos fornece uma perspectiva não estereotipada da ficção científica ambientada no continente africano.
A narrativa descreve um futuro distópico, em que humanos e robôs habitam uma aldeia de exploração de petróleo. A convivência entre os seres é marcada pela hostilidade em meio aos brutais assassinatos dos habitantes pelas “mãos” dos Zumbis (assim denominados pela população), pois os robôs foram construídos pelo governo para impedir, violentamente, os roubos nos oleodutos. Na ironia de roubar o que já lhes pertenciam, os moradores da aldeia vêem no contrabando do óleo um método de sobreviver às negligências que o governo os submetem.
O conto, de 25 páginas, integra o Projeto Cápsula da Morro Branco e pode ser lido gratuitamente no site da editora. Originalmente publicado no livro Seeds of Change em 2008, a história é contada por um narrador personagem e está subdividida em pequenos saltos temporais.
Aranha, a Artista se passa em uma aldeia no Delta do Níger que sofre, assim como na vida real, com a devastação ambiental causada pela intensa exploração do petróleo. A autora expõe as condições precárias da região, considerada uma das mais poluídas do planeta, que transcende a ficção. A aldeia padece com a contaminação do solo e da água pelo vazamento de óleos, fazendo com que os habitantes adoeçam, e precisa conviver com a poluição sonora e do ar provenientes dos queimadores de gás.
A protagonista, Eme, é quem narra a sua história como habitante da aldeia. Vítima de agressão física do marido alcoólatra, Eme é uma mulher infeliz e solitária que constrói o seu refúgio no violão, herdado de seu pai, para esquivar-se da depressão. Seu companheiro, Andrew, culpa-a pela incapacidade de gerarem um filho e recorre à bebida para controlar a sensação de impotência diante da perversidade do governo, que caminha da violência policial até a atroz criação dos Zumbis.
As inteligências artificiais são descritas como criaturas gigantes de aparência aracnídea, e apesar de serem programadas apenas para assassinar qualquer um que se aproximasse dos oleodutos, os Zumbis são seres conscientes que gradativamente alimentam um desapreço pelos seus criadores. O agridoce da narrativa é quando Eme conhece uma zumbi, batizada pela própria como Udide, e encontra nela a esperança e felicidade que os outros humanos lhe tiraram. Unidas pela música, a amizade e afeto entre as duas cresce em contraste ao ódio cada vez maior dos Zumbis pela humanidade. Uma rebelião se torna inevitável e é nesse contexto que a história se encerra.
A ficção do conto se restringe aos robôs-aranhas: muitos elementos apresentados pela autora fazem parte da Nigéria real. Apesar de quase não descrever o ambiente do enredo, Okorafor insere o leitor no Delta do Níger através das referências à cultura e ao dialeto nigeriano. É na sutil escolha dos nomes que aparecem as lendas africanas, como em Udide Okwanka, a Artista Suprema, e em Anansi Droids 419, sendo Anansi o deus híbrido entre homem e aranha que deu histórias aos humanos. Até o detalhe do número 419 não parece ser desproposital e é, possivelmente, uma alusão à Fraude Nigeriana que consta no Código Penal da Nigéria como Artigo 419.
Das gírias às citações de grandes artistas nigerianos, a realidade do conto também preocupa. A violência e as consequências do abuso psicológico contra a mulher são descrições tão fidedignas que causam desconforto logo nas primeiras frases. Eme se sente responsável pelas agressões e pela infidelidade do marido, atribui em si a culpa de sua incapacidade de gerar filhos e é obrigada a abandonar seus sonhos por causa do casamento. De tão comum, não precisa atravessar o Atlântico para encontrar inúmeros casos semelhantes ao da protagonista.
A esperança do conto tem nome e som. A presença da música e de Udide transforma significamente a vida de Eme, e é nos detalhes de azul que o leitor acompanha a construção do afeto entre as duas personagens. Indo de instrutora a aprendiz, os momentos musicais de Eme com a aranha é o que desperta confiança na protagonista. A canção favorita de Udide, No Woman No Cry, parece um recado para sua amiga humana de que “tudo ficará bem”.
A conflituosa relação entre humanos e robôs se intensifica e atinge o clímax ao final do conto em um confronto entre Homem e máquina. O ganho de consciência e a revolta dos zumbis contra os moradores da aldeia não parece obra do acaso. Por se tratar de um país com abundância de petróleo, cujo comércio e tecnologia são controlados por empresas estrangeiras, a guerra causa desconfiança quanto às reais motivações dessa rebelião. Quem se beneficiaria com uma iminente guerra civil? A pergunta provoca a reflexão sobre como conflitos internos tornam um país mais suscetível a intervenções externas.
Nnedi Okorafor, nascida nos Estados Unidos e de ascendência nigeriana, se tornou uma das principais autoras desta geração e coleciona diversos prêmios por seus contos e livros. Dentre os mais famosos, estão os prêmios World Fantasy (por Quem Teme a Morte), Hurston-Wrigh (por Amphibious Green), Hugo Award e Nebula Award (ambos por Binti). Além de escritora, Okorafor é doutora em Inglês, leciona aulas de literatura e escrita criativa na Universidade de Buffalo, e também roteiriza diversos quadrinhos da série Pantera Negra, herói do universo Marvel.
A autora tece sua impecável narrativa e prende o leitor nas linhas da história de Eme e Udide. Aranha, a Artista é uma obra que causa incômodo na medida certa: a leitura, totalmente imersiva, aponta o que há de melhor nas Inteligências Artificiais quando elas apresentam sentimentos humanos e, paralelamente, o conto também expõe o que há de pior no ser humano. Apesar de não possuir um público-alvo específico e limitação de faixa etária, a presença de temas sensíveis, como violência doméstica, podem causar desconforto ou ocasionar gatilhos durante a leitura. É justamente pela abordagem dos temas, que elucidam a imperfeição da sociedade fora da ficção, que o conto de Okorafor faz-se tão necessário.