Em 2009, Mark Fischer publicou o livro “Realismo Capitalista”, sua obra mais conhecida. No mesmo ano, comemorou-se o aniversário de 40 anos da chegada do homem à Lua. Ainda nas comemorações daquele ano, o livro de ficção científica cyberpunk “Neuromancer”, de William Gibson, completou 25 anos desde sua primeira publicação. Mas o que a chegada do homem à lua, um livro de ficção e o conceito de realismo capitalista têm em comum? Talvez mais do que você imagina.
O movimento cyberpunk surge nos anos 1980, sendo que o termo apareceu pela primeira vez em 1983 numa publicação do autor Bruce Bethke. Nesse contexto, o termo surge como a fusão de duas ideias, o Cyber, que representa o avanço tecnológico e científico, e o Punk, enquanto atitude de rebeldia e, mais profundamente, a marginalização e a iconoclastia características do movimento. O movimento literário ficou mais conhecido nas obras de William Gibson, mais especificamente em seu primeiro romance, “Neuromancer”, que foi um sucesso, chegando a ganhar os 3 grandes prêmios da ficção científica (o prêmio Nebula, o prêmio Hugo, e o prêmio Philip K. Dick).
Em 1969, o primeiro módulo lunar tripulado por humanos pousou na Lua, um feito de engenharia gigantesco que ocorreu em meio ao contexto da corrida espacial entre a União Soviética e os Estados Unidos da América. A União Soviética (URSS) existiu no período entre 1917 e 1991, mas não manteve o mesmo caráter durante todos os seus anos de existência. Na verdade, a hegemonia do capitalismo e a decadência soviética são alguns dos argumentos que Fischer utilizou para caracterizar o que ele chamou de realismo capitalista. Em 2009, o movimento cyberpunk já havia se saturado, a URSS já havia se desfeito e a tecnologia havia ultrapassado em muito aquela que levou o homem à Lua. O advento da Internet, o ecossistema digital de blogs, as produções culturais que surgiram nesse período e a experiência pessoal de Fischer o levam a publicação de “Realismo Capitalista”.
Mas o que é o realismo capitalista? De acordo com o autor, trata-se de uma atitude de impotência perante o capitalismo, ao mesmo tempo que é uma consequência da hegemonia global do capitalismo tardio. Com o fim da maior experiência de socialismo real e as outras experiências relegadas à marginalização por meio de sanções e conflitos, o capitalismo se viu sem um antagonismo direto. Esse contexto, em conjunto com o discurso da mídia hegemônica, levou muitos a adotarem uma posição de impotência reflexiva, em que a única atitude realista perante o capitalismo é a de que ele pode não ser perfeito, mas é o único sistema possível. Essas noções de realidade em muito permeiam a literatura cyberpunk, não por que ela concorde com isso, mas porque a sociedade cyberpunk é um reflexo extremado do contexto social em que ela foi criada. Logo nas primeiras páginas de “Neuromancer”, vemos também a globalização capitalista, tanto na ficção quanto na realidade. Literalmente na primeira página, somos recebidos com a afirmação: “O Chatsubo era um bar de expatriados profissionais; você podia beber ali durante todos os dias por uma semana e nunca ouvir uma palavra em japonês.”. Esse reflexo no livro pode ser evidenciado por meio do abuso de substâncias, da criminalidade e principalmente do acesso à alta tecnologia até mesmo por aqueles que vivem à margem da sociedade. Podemos ver esse último aspecto diariamente em nossa sociedade: pessoas que têm acesso a celulares de alta tecnologia, mas mal conseguem comprar comida; trabalhadores de aplicativos como Uber e iFood; no YouTube, onde existe uma luta constante entre os criadores de conteúdo e o algoritmo. “ Na era pós-fordista … a linha de montagem transforma-se em fluxo de informações…”. Essa frase resume muito bem o efeito anteriormente descrito. Num outro trecho, ainda do primeiro capítulo de “Neuromancer”, vemos uma frase que evidencia outra característica do realismo capitalista e da lógica neoliberal em relação ao indivíduo: a ideia de que apenas ele é responsável por seu próprio sucesso.
“O negócio ali era um constante zumbido subliminar, e a morte o castigo aceito por preguiça, descuido, falta de sutileza, a incapacidade de atender às exigências de um intrincado protocolo.”
Uma vez imposta essa lógica, pouco importam as circunstâncias em que você está inserido. Mesmo que seguir o “protocolo” seja mentalmente destrutivo e fisicamente exaustivo, não se adequar ao mercado é uma sentença de morte longa e dolorosa.
Em sua obra, Fisher diz que o realismo capitalista:
“Trata-se de uma atmosfera abrangente, que condiciona não apenas a produção cultural, mas também a regulação do trabalho e da educação – agindo como uma espécie de barreira invisível, bloqueando o pensamento e a ação.”
E por mais que em “Neuromancer” os protagonistas confrontem a elite burguesa quase inumana da família Tessier Ashpool, suas ações jamais se direcionam a estrutura que permitiu que esses bilionários se distanciassem cada vez mais de sua própria humanidade. No fim da história, Case termina seu trabalho para seus empregadores, sem ter certeza de quais serão as consequências de seus atos, após ser envolvido diretamente em uma série de eventos muito maiores que ele, sendo ele mesmo alguém que poderia ser substituído por outra pessoa com habilidades semelhantes. No fim das contas, essas obras nos levam a refletir sobre os passos que vêm sendo tomados por nossa sociedade. Vemos que a tecnologia de hoje está muito mais perto da descrita na obra de Gibson do que daquela que levou o homem à Lua, com as redes de internet banda larga, comunicação instantânea, inteligências artificiais e realidades virtuais. Nesse sentido, reconhecer em “Neuromancer” os sintomas descritos em ‘Realismo Capitalista” nos serve não só como um exercício de análise literária, mas como uma reflexão de alerta sobre nosso próprio futuro. Será que é do interesse de todos uma sociedade global, precarizada e fragmentada? Deve o avanço da tecnologia agravar as tensões sociais de nossa realidade como na literatura cyberpunk, ou deveria ele desonerar o trabalhador e melhorar sua qualidade de vida?