Na era contemporânea, onde os direitos são como migalhas dadas aos pombos e tempos aos quais as pessoas se esquecem que são pessoas, nasce talvez um dos grandes estigmas da sociedade moderna, teríamos nós o direito à preguiça? A construção social pela qual a sociedade vigente se consolidou é edificada ao redor do modelo capitalista, circundando o conceito de executar para receber, então supostamente quanto mais produzimos mais direitos recebemos. Dentro da ideologia capitalista, o conceito de eficiência impera e penetra todos os aspectos da sociedade, mas essencialmente tudo se resume à manutenção da disparidade social entre as classes. Então a crença em torno da eficiência apenas gera a falsa ilusão de progresso e culmina, dentre tantas coisas, por vitimar a lucidez do presente, a inércia inerente ao existir e tão logo ao pensar, sim: a preguiça. Seria a preguiça um aceno ao amor próprio ou um gesto desesperado de frear o tempo que se esvai? Seja qual for a interpretação da preguiça, ainda é um elemento intrínseco à existência humana.
A discussão em torno do espaço que a preguiça tem o direito de ocupar em nossa existência não é recente, precedendo até mesmo o capitalismo. Tal debate se inicia com o genro, não tão famoso, de Karl Marx, o escritor Paul Lafargue. Em sua obra “O direito à preguiça”, Paul infere que uma sociedade capitalista faria as pessoas “engolirem” seus momentos de lucidez seja ela artística, política ou social em prol do progresso, destacando a necessidade da criação de políticas públicas que visem proteger a psique humana. Afinal o discernimento sobre a realidade é aquilo que dá sentido ao progresso humano, citando Paul: “A paixão cega, perversa e homicida do trabalho transforma a máquina libertadora em instrumento de sujeição dos homens livres: a sua produtividade empobrece-os”.
Em contraste com o sistema capitalista, o trabalho na Grécia antiga era visto sob maus olhos. Para os gregos, trabalhar era uma atividade dada aos escravizados e somente aqueles denominados cidadãos poderiam ter o direito de usufruir do ócio. Nesse sentido, os cidadãos gregos estavam mais preocupados em investir seu tempo com seu desenvolvimento pessoal, participando de centros comuns (Ágoras), discutindo assuntos políticos e desfrutando da cultura e do conhecimento da época. A partir disso, emerge uma reflexão da modernidade: Qual tem sido a preocupação das pessoas, mais especificamente, dos estudantes nos dias atuais? Provavelmente, algo semelhante aos objetivos dos gregos, no entanto é implementada de forma plenamente diferente. Na busca pelo ócio, ou na “luta” para poder usufruir do direito à preguiça, os estudantes absorvem uma percepção meritocrática e passam a fazer uso de frases de efeito, como seus objetos de motivação, por exemplo: “estude enquanto eles dormem”, “sofra agora para não ter que sofrer depois”.
Neste cenário, uma característica importante surge: o ato de abster-se de uma necessidade humana em prol de um objetivo considerado maior. Contudo, o que seria mais importante do que o bem estar e a saúde individual? Tal ponto evidencia a dominação do sistema capitalista sobre uma sociedade já refém de seus paradigmas. Através do êxodo rural, os trabalhadores associaram suas novas relações humanas com as atividades realizadas nas indústrias. Segundo Luiz Octávio em seu livro “O que é lazer?”, o trabalho industrial impõe uma cultura própria, de acumulação de bens, de eficiência de tempo, diferentemente do trabalho rural que, ainda que cansativo, respeitava os limites humanos e da natureza. Assim, na cultura industrial, o início e fim dos expedientes são ditados pelas horas do relógio, as pausas são determinadas pelas necessidades da produção, as tarefas são artificiais e repetitivas e o trabalho, portanto, se torna algo cansativo e enfadonho.
Remediar o estigma sobre a preguiça tem sido uma obra em construção ao longo dos últimos séculos, que transcende o contexto social, mas introduz elementos da ética, política, cultura e sobretudo da medicina. Ou seja, a ineficiência transparece como uma doença aos olhos de uma sociedade implacável na busca pelo progresso. Com essa desumanização, as pessoas, cada vez mais, passam a ser tratadas como máquinas. Talvez o exemplo mais recente e contundente nesse contexto é o desenvolvimento de medicamentos psicodélicos, que em seus resultados preliminares demonstraram um potencial singular de regular a produtividade e o humor. Do ponto de vista científico é uma perspectiva excepcional, contudo como Huxley reiterou em seu livro “Admirável Mundo Novo” à um século atrás: “a menos que prefiramos a descentralização e o emprego da ciência aplicada, não como o fim a que os seres humanos deverão servir de meios, mas como o meio de produzir uma raça de indivíduos livres”. Nesse sentido, a ciência deveria tornar as pessoas melhores e não vítimas dela. Dessa forma, esses avanços farmacológicos culminam apenas por denotar a falha histórica da sociedade na destituição de um sistema desumano, que prefere conviver com uma realidade distópica, à promover coercitivamente ações que estabeleçam dignidade a indivíduos dilacerados pelo progresso, para o progresso.
Encontrar individualmente o equilíbrio frente a esta realidade que se materializa é um desafio considerável, mas invariavelmente uma problemática emerge, como orientar pessoas de modo que elas promovam seu próprio direito à preguiça? Esse paradigma envolve diretamente os docentes, que não devem apenas se preocupar em formar indivíduos munidos de pensamento crítico, mas também conscientes de sua humanidade. É indispensável que o indivíduo torne a respeitar seus momentos de lucidez para serem capazes de se estabelecer na sociedade, a qual não lhes concede este direito. Desta forma, a idealização das práticas de ensino devem contemplar a conscientização dos estudantes de que seus horários de descanso e lazer compõem parte vital do seu processo de aprendizagem e, assim, de suas vidas. Então por fim o professor deve formar alunos preguiçosos? Sim, mas não de forma literal, isto pois ressoa sobre a responsabilidade do educador a formação de indivíduos com mentalidades saudáveis, logo, que levem em consideração suas próprias limitações ao fomentar suas prospecções.