Crise da modernidade… Este é um conceito que vem sendo estudado por filósofos, pensadores e acadêmicos contemporâneos. Sinteticamente, ela pode ser entendida como o advento de um olhar tão especificamente subjetivo que fecha os olhos para demais aspectos envolvidos nos processos discutidos. A “política de cancelamento”, o uso irrestrito da “liberdade de expressão” e mesmo o debate sobre representatividade e local de fala caem nesta mesma definição. Destaquemos aqui, que não há um posicionamento unânime sobre se este fenômeno traz aspectos positivos ou negativos à nossa sociedade. Tomemos aqui que, e somente que, é uma observação da realidade pós-moderna que nos encontramos, assumindo que podem existir outras. O que este texto traz é uma reflexão sobre como isso impacta a ciência e, com sorte, como podemos tornar este fenômeno “melhor” e mais reflexivo para o que queremos construir.
Quando inserimos o aspecto subjetivo da produção humana nas discussões científicas, sobretudo, àquelas que tangem às naturais, o descrédito a este pensamento é quase imediato. Contudo, não seria inocente demais pensar que este aspecto não esteve sempre presente dentro da produção humana? Quer dizer, a ciência, outrora, já foi cumplice da igreja ao confrontar a co-existência igualitária de homens e mulheres, brancos e demais etnias, pessoas cis e trans. Podemos afirmar, com segurança, que estes embasamentos de alguma forma, estavam ancorados no que definimos de “ciência”?
Se por um lado, o questionamento de um pensamento hegemônico nos trouxe resultados sociais positivos, hoje sofremos o fenômeno de pessoas que se posicionam diametralmente opostos ao pensamento da ciência e que querem ser ouvidas, no mesmo espaço, com a mesma intensidade e relevância que os que produzem ciência. Nesse sentido, convido-os a refletir sobre o óbvio: por que é moralmente correto dar espaço e ouvir pessoas que se opõem à hegemonia no primeiro caso, mas não no segundo?
Essa pergunta torna-se mais fácil de responder quando olhamos não para o produto do conhecimento transmitido, mas para as bases dele. Um questionamento que parte de um pensamento de “será que o que construímos até aqui sempre esteve correto, ou erramos em determinado ponto e devemos retornar a ele?” é muito diferente de afirmar que “todo conhecimento que construímos é errado, vamos ignorá-lo e pavimentar um novo”.
Felizmente, temos um apoio em nossa reflexão sobre quais são as bases que a ciência se ancora para construir seu conhecimento. A filosofia da ciência faz esse papel sobre discutir os métodos utilizados para as pesquisas, a fim de trazer uma validação argumentativa que é algo muito importante para o questionamento. A filosofia tenta compreender os métodos que estão sendo utilizados pela ciência para estudar determinado assunto.
Nesse sentido, podemos trazer um dos principais aspectos da construção de ciência de Bachelard: a visão de progresso científico, que se dá, sim, por rupturas à visão predecessora, mas essas rupturas não se caracterizam como uma negação total do passado, mas através de uma generalização dialética, isto é, o modelo que constitui o progresso deve englobar e ir além do modelo que ele nega, destaca-se, no entanto, que essa negação se dá na forma de construção do conhecimento, isto é, nos próprios métodos e percepções do fazer ciência. Esse aspecto leva-nos a compreender quais críticas devem, de fato, ser vistas como um convite à construção da ciência.
Nesse sentido, podemos buscar definir conceitos chaves para embasar nossas discussões que envolvem a crítica à ciência. A crítica, por definição, é uma afirmação que se modula pela oposição de uma visão e, de fato, tanto uma visão construtivista quanto a visão negacionista se encaixam nesse aspecto: uma visão construtivista da ciência que questiona suas formas, métodos, interpretações e resultados pode se encaixar no âmbito de uma visão anticientificista, por outro lado, a visão que nega esse conhecimento, métodos e resultados se ampara muito mais na anticiência.
Essas duas oposições, ainda que surjam de maneiras parecidas, representam visões que se opõem a aspectos distintos. A ciência diz respeito sobre, como apontado acima (destaco que existem diversas definições para ela, esta, foi somente a escolhida para tecer esta linha teórica), os dados obtidos por observações de fenômenos e aplicações de técnicas, em que, através da interpretação de dados, formulam-se teorias que busquem fazer a melhor aproximação possível da realidade sensível e os fenômenos envolvidos. O cientificismo, por outro lado, é uma visão que se assemelha a da ciência, mas deixa de lado uma parte importante desta definição: a parte de que a ciência trata-se de uma aproximação precisa da realidade, sem que, necessariamente, a seja. Quando esquecemos deste ponto, somos levados a acreditar que os erros sistemáticos e aleatórios de experimentos, que a interpretação de dados e que a subjetividade dos pesquisadores, não podem interferir nos resultados.
Dessa forma, opor-se ao cientificismo, lê-se, ser anticientificista, não mira na ciência ao tecer suas críticas, mas sim visa uma produção de ciência que esteja mais atrelada a suas bases epistemológicas. O anticientificismo está atrelado à ciência. Assim, é, de fato, uma comparação injusta deste pensamento com o da anticiência.
A partir dessas informações apresentadas, evidencia-se a necessidade de uma conscientização, da sociedade atual, em relação ao método empregado na elaboração de uma crítica à comunidade científica e seus paradigmas. Tendo em vista que a filosofia da ciência se dedica ao estudo dos aspectos que possuem maior relevância acerca do fazer ciência, ela deve ser levada em conta no momento de discussão por todos aqueles que usam seus direitos de cidadania, a fim de opor-se às normas e padrões já estabelecidos. Portanto, uma discussão bem fundamentada sobre ciência leva em consideração, primeiramente, que a mesma não é perfeita e que, apesar de avaliada como uma aproximação da realidade, é o único instrumento que a humanidade possui que lhe permite adquirir resultados positivos e vantajosos sobre a natureza. Segundamente, deve-se levar em consideração os aspectos de englobamento da ciência antiga no empenho de seu aprimoramento, usando, para isso, a reflexão do método e suas normas junto ao entendimento de suas bases. O uso recorrente da anticiência, que é observado na atualidade, deveria diminuir de forma que a sociedade pudesse usufruir cada vez mais de suas democracias em prol de uma busca construtiva e em conjunto pela verdade.