No alto de uma colina, em completo isolamento e solidão, um professor de matemática tenta lidar com um profundo sentimento de culpa, provocando um embate entre seu lado emocional e seu lado racional. Esse conto nos faz pensar sobre esteriótipos, razão e sentimentos mesmo sendo curto e de escrita simples, mostrando a habilidade da autora. Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920 e logo veio para o Brasil com sua família judia ao fugirem da perseguição da época. Aqui, naturalizou-se brasileira e se tornou um dos nomes mais destacados da literatura nacional, conhecida por seus contos e narrativas cuja linguagem é extremamente poética, diferente da escrita tradicional.
O conto se trata de um professor de matemática que abandonou o seu cão após mudar de cidade e agora tenta lidar com uma enorme culpa. Para isso, ele decide enterrar um cão desconhecido que encontrou morto, como um símbolo para pagar o seu crime.
Mas por que especificamente o personagem é um professor de matemática? Não é uma escolha aleatória da Clarice, visto que ela trabalha em cima de esteriótipos, não para reforçá-los, mas para refletirmos sobre. O esteriótipo de um professor de matemática descreve alguém frio, rígido, só, racional. O próprio estilo de escrita com linguagem objetiva usado pela autora no conto, de certa forma, se conecta com a racionalidade desse esteriótipo. Esses traços do personagem são perceptíveis ao passo em que ele recorre à solidão para lidar com um sentimento, e a maneira com que ele tenta lidar com esse sentimento é por um processo racional. Para o professor, enterrar o cão desconhecido pode compensar seu crime passado, como numa simples conta matemática, e deixá-lo quite com o seu cão que fora abandonado. Porém, lidar com sentimentos é mais complexo que isso, principalmente com a culpa, um dos sentimentos que menos somos ensinados a refletir e lidar.
Dessa maneira, a autora expõe a fragilidade da esfera emocional do personagem, que tenta racionalizar seus sentimentos. E nós, autores desta resenha e membros do Programa de Educação Tutorial da Licenciatura em Física, podemos nos identificar com o personagem. Isso porque, como estudantes de física, estamos imersos em um ambiente onde a racionalidade é mais valorizada e tida como superior à emoção, o que explica a nossa dificuldade em lidar com sentimentos, uma vez que somos estimulados a inferiorizar esse lado emocional. Em um paralelo mais geral, qualquer um pode se identificar com o professor de matemática, visto que a sociedade desvaloriza as emoções e não incentiva a atenção à saúde mental, dificultando o processo de todas as pessoas lidarem com suas emoções.
Outro ponto que pode gerar identificação, é o fato de o personagem ser semelhante ao esteriótipo de uma figura masculina. O professor opta pela solidão para lidar com sentimentos, assim como o esteriótipo de homem é tido como alguém que não demonstra suas fragilidades e emoções em público, precisando se isolar para tal. Podemos perceber como todas as escolhas da Clarice ao escrever o conto não são ao acaso. Elas corroboram com a imagem que ela quer construir do personagem central que, mesmo sendo um esteriótipo muito específico, é capaz de provocar identificações com o leitor.
Nesse conto, a Clarice mostra que esteriótipos, apesar de estarem carregados de preconceitos e senso comum, estão muito longe de estarem descolados da realidade e assim podemos usá-los para extrair reflexões sobre ela. Porém, é importante frizar que mesmo estando relacionados, a realidade não se submete aos esteriótipos.
Mas, afinal, em meio a todas essas reflexões, o professor de matemática se satisfaz lidando com o sentimento de culpa à sua maneira?