Kurt Vonnegut foi um ex-prisioneiro de guerra e um ex-militar que lutou na Segunda Guerra Mundial. Após esse episódio, o autor voltou aos Estados Unidos, país em que nasceu, e se dedicou à literatura por mais de 40 anos, desenvolvendo vários romances e contos, inclusive o conto distópico Harrison Bergeron.
Nessa distopia, que se passa em 2081, o autor descreve uma realidade em que as pessoas são controladas de tal forma que todas elas tenham as mesmas características que as outras. Assim sendo, existe um padrão e uma média para cada atributo humano, a qual deve ser igual entre todos, e quem fiscaliza esse tipo de nivelamento são os agentes pertencentes ao Nivelador Geral (NG). Esses atributos vão desde a inteligência do indivíduo à sua beleza.
Deste cenário, os primeiros personagens são apresentados: George, Hazel e Harrison Bergeron, na qual os dois primeiros são um casal e o terceiro é o filho deles. A trama desse conto de ficção científica é que o Harrison foi levado pelos agentes do NG, pois os seus atributos eram extremamente elevados e eram um ser de difícil controle. Enquanto aos pais, o autor descreve-os da seguinte maneira:
“Hazel tinha uma inteligência perfeitamente média, o que significava que ela não poderia pensar em nada muito complicado, exceto em coisas muito pontuais. George possuía uma inteligência acima do normal, por isso tinha de usar um pequeno rádio em seu ouvido. Ele foi obrigado por lei a usá-lo todo o tempo. Ligado a um transmissor do governo, emitia um sinal que produzia um ruído a cada vinte segundos ou menos. Sua finalidade era manter as pessoas como George sem a vantagem injusta de terem cérebros mais capazes que os dos demais”. (VONNEGUT, 1961, p. 1)
Ao longo do conto, vários exemplos como esse de inibição de atributos, que são inerentes às pessoas, são apresentados. Nesse conto, é nítido que o governo vigente consegue garantir uma suposta igualdade entre os seus compatriotas, mas também é explícito a neutralização da individualidade das pessoas. Nesse sentido, esse tipo de atitude do NG levanta uma questão essencial para a sociedade: como garantir a igualdade entre as pessoas e, ao mesmo tempo, a individualidade delas?
Em uma tentativa de trazer a reflexão do texto à nossa realidade, podemos ver esse tipo de igualdade nas escolas brasileiras. Segundo Vera Candau, professora e pesquisadora da PUC – RJ, “as diferenças são constitutivas, intrínsecas às práticas educativas”. Nesse caso, a pesquisadora refere-se às diferenças culturais dos educandos das instituições de ensino no Brasil, os quais sofrem um processo de homogeneização na tentativa de constituir uma identidade igualitária entre o povo brasileiro.
Esse fenômeno da homogeneização tem origem na época da institucionalização da escola na região latino-americana, em que se visava criar uma instituição onde se poderia educar um único povo, uma única nação, anulando as diferenças entre os cidadãos (apud Lerner, 2007, p.7). Desse modo, criou-se a instituição chamada escola que concentra o poder de educar o povo voltado à cultura eurocêntrica, reprimindo a origem dos alunos, assim como os seus saberes prévios, vozes, cores, crenças e sensibilidades (CANDAU, 2011, p. 242).
Dito isso, podemos perceber melhor a relação que existe entre o conto e a nossa realidade sobre a escola. Nesse sentido, pode-se dizer analogamente que o Nivelador Geral do conto seria a nossa instituição de ensino em nossa realidade, a qual tem como função fundamental transformar-nos em pessoas iguais, mas ao invés de rádio nos ouvidos, máscaras feias, pesos nos pés e óculos com altos graus, esse controle é feito através dos pensamentos, da língua, da nossa origem, da cultura e dos nossos ideais. Desse processo apenas resulta uma igualdade falsa, uma igualdade que é confundida com a homogeneidade dos indivíduos.
Felizmente, há pessoas preocupadas atualmente com essa problemática das escolas brasileiras. Embora esse movimento ainda seja insuficiente para grandes mudanças na rede de educação nacional, esses educadores defendem uma abordagem mais intercultural nas práticas educativas, ou seja, que respeitam as individualidades de cada educando no meio escolar. Portanto, pode-se dizer, principalmente aos educadores, que deve haver uma maior atenção quando promovemos uma homogeneização dos educandos em nome da busca de uma suposta igualdade, pois esta inibe a individualidade que é inerente ao humano e deve ser respeitada.
Em síntese, podemos perceber o quão rico o texto de Vonnegut pode ser para que nós possamos refletir sobre a nossa sociedade. A relação que existe no conto sobre a igualdade entre os cidadãos e a nossa realidade deve ser discutida para que possamos nos conscientizar sobre esses aspectos apontados pelo conto. Em suma, o texto é excelente e pode nos trazer também outros insights sobre a igualdade na sociedade e isso instiga-nos a refletir um pouco mais sobre esse tema tão relevante para o meio social.