12 de abril de 2021

Sons da Fala

Do conto à autora

As diversas obras de ficção científica que abordamos nesta seção têm, em geral, um elemento em comum: o estranhamento. Este  termo é utilizado para referir-se  ao fato de que o texto e o leitor constroem uma outra realidade  baseada nesta em que vivemos e que, a partir de uma mudança de perspectiva, somos levados a refletir sobre as características que relacionam  tais realidades.

O conto “Sons da fala”, da escritora Octavia Butler, provoca, em poucas páginas, tal sensação de estranhamento a partir de diferentes formas. Como exemplo, é  possível identificar problemáticas ligadas à comunicação (ou ausência dela), abuso de poder, raça e gênero em um ambiente distópico em que uma possível pandemia faz com que os seres humanos percam sua habilidade de se comunicar de forma verbal.

Da autora à comunicação

Tal distopia é apresentada através dos olhos da protagonista Rye, situada no meio do caos em que praticamente todas as pessoas têm a fala, a escrita, a leitura ou a escuta comprometidas. Logo no início do conto, somos expostos à brutalidade de uma briga no ônibus em que a protagonista viaja para buscar parentes ainda vivos em outra cidade. O confronto físico resultante da deteriorada  comunicação entre dois homens expõe os resultados da possível doença  na sociedade mundial: o comprometimento da linguagem leva à barbárie.

Butler mostra-nos  que a perda da comunicação verbal não significa apenas o fim de um código linguístico ou do conjunto de signos que utilizamos para referirmos  às coisas.  Tal perda também interfere diretamente na socialização dos indivíduos, uma vez que, ao falarmos ou escrevermos, produzimos enunciados com estilos e conteúdos que constituem as ações humanas. Para Bakhtin, filósofo e linguista russo, os enunciados nunca são únicos, já que estão sempre relacionados aos participantes de um diálogo, sejam eles emissores ou receptores. Assim, podemos dizer que a linguagem vai além de sua dimensão comunicacional e estabelece as bases das interações sociais entre os sujeitos.

No conto, isso fica explícito após o incidente no ônibus, quando um homem com um distintivo oferece ajuda a Rye. O próprio nome do suposto policial é assimilado pela protagonista a partir de uma pedra que ele carregava: “O nome dele poderia ser Rock ou Peter ou Black, mas ela decidiu pensar nele como Obsidian”. Todos os gestos produzidos pelas duas personagens podem ter múltiplos sentidos e isso, somado à hostilidade do mundo, faz com que qualquer interação se torne um campo minado.

Da comunicação à internet

Na contemporaneidade, nós fomos capazes de desenvolver novos meios possíveis de comunicação humana, o que revolucionou significativamente o modo pelo qual nos expressamos, comunicamos e sentimos em relação à comunicação. A aproximação da internet com o cotidiano do indivíduo implicou em uma nova caracterização do diálogo: o distanciamento entre o emissor e o receptor da mensagem na comunicação em tempo real.

           Subsequente a isso, podemos observar no conto a limitação da abrangência da comunicação, o que nos traz um empecilho na forma de como a mensagem é recebida. Paralelamente, nos dias atuais, vemos que a internet atua como uma verdadeira “divisora de águas”, pois a mesma consegue, de uma forma quase instantânea, trocar informações entre o emissor e o receptor. Na série de ficção científica “Black Mirror”, o episódio “Queda Livre” ( “Nosedive”) aborda, de maneira inteligente, como a troca de mensagens de texto pode ditar as nossas vidas, na qual temos esta extrema preocupação pela própria imagem, pela maneira como o mundo nos vê, e isso acaba criando uma disputa para alcançar uma classificação maior na rede e ser bem visto na sociedade. Isso nos mostra como a população oprimia a protagonista da narrativa, sua personalidade era condicionada, vivia de acordo com o que era bem visto pelas pessoas. Não escolhia as suas vontades, apenas o que agradava o meio social.

        No enredo de Butler, vemos no final do conto que Rye ainda possuía a fala, algo que ela manteve escondido por tanto tempo. Mas por quê a protagonista teve essa atitude? Percebemos, na trama, que a falta de comunicação gera uma onda de violência entre as pessoas, e aqueles que foram menos afetados pela doença são perseguidos. Observamos isso quando a protagonista Rye está no carro com Obsidian, e o mesmo pega um mapa e o lê para buscar um caminho para os dois, Rye sente-se com muita raiva e inveja de Obsidian, pois já não possuía a habilidade de ler.

           Pensando na questão das redes sociais no geral e como elas funcionam, nós encontramos certo conflito na forma limitada de expressar nossos sentimentos. No Facebook, por exemplo, temos acesso a 5 sentimentos possíveis de reações a uma publicação, o que não se mede suficientemente quando nossos sentimentos são postos pessoalmente a alguém. No conto, é bem visível que a relação de Rye com Obsidian, através do contato físico, podia expressar de diversas maneiras o que cada um sentia pelo outro. Talvez esse seja o problema das redes sociais, onde criamos uma imagem própria, na maioria das vezes fictícia, na qual  queremos dar ao mundo quem gostaríamos de ser. Em “Sons da fala” isso é inviável, pois não temos uma comunicação virtual.

Da internet ao racismo

Para os leitores que desconhecem o histórico da autora, podem não notar o cunho representativo que este e as diversas outras obras de Butler têm em seus enredos. Afinal, como você idealizou as personagens principais: Rye e Obsidian? De forma mais direta, essas personagens eram brancas em seu imaginário?

É claro que somos livres para idealizarmos a história que nós lemos da maneira que nos convém; na verdade, a essência da leitura é a própria imaginação individual do que está sendo lido. Nesse sentido, a autora permite-nos idealizar os personagens desenvolvidos em seu conto de forma livre. Não obstante, essa é uma oportunidade de imaginarmos os personagens do conto de maneira que os distinga de um estereótipo falsamente tido como universal. Desse modo, devemos reconhecer que a capacidade de assimilação que nós temos com a nossa realidade e a relação que essa tem diante de um texto fictício molda, de forma concreta, a percepção de mundo que temos, ou seja, até que ponto nós somos capazes de imaginarmos aquilo que lemos de acordo com a diversidade de gênero, sexual e étnico-racial que temos em nossa própria realidade.

Nesse sentido, a autora instiga-nos a repensar a maneira pela qual nós notamos a nossa própria realidade em um texto fictício. Uma das discussões que os textos da autora, como o Sons da Fala, traz-nos é a ideia das raízes do racismo em nossa sociedade, na qual tendemos a idealizar personagens estereotipados – brancos -, o que nos impede de afirmar que somos completamente dissociáveis do termo racismo. Desse modo, cabe a nós tentarmos perceber a nossa realidade de modo que possamos associá-la com os diversos textos que nos propomos a aventurar e os imaginar de forma criativa e verossímil.

Das discussões à reflexão

Por fim, podemos dizer que o estranhamento oferecido por Butler em Sons da Fala (como também no restante de sua obra) é um convite para sairmos do lugar comum da ficção científica. Seja através da reflexão sobre a função da linguagem ou pela forma que assimilamos os produtos culturais, somos provocados a revisitar concepções até então tidas como naturais para, enfim, desconstruí-las.